quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Adivinha...



Por amar o vento trouxe-me.
Por amar cai
Por amar me feres.

Eu deveria ser a união do essencial e não passo da mísera criação das minhas próprias mãos. Uma espécie de aragem fria que se funde com os sons do mundo. Ando por aí a cantarolar, se tiveres olhos para me ver, em caminhos de terra batida, onde ninguém deseja passar em nenhum momento da sua existência. Sendo assim, apago toda a marca vergonhosa que revela a minha passagem por tal lugar, com o meu sopro calmo e paciente.
Por amar, magoaste-me, passo pelos teus ouvidos e sussurro-te ao sabor do meu ritmo, sorriu-te na beleza da minha ilusão sem rancor ao que me viu.
Dei-me ao abismo, à vertigem, ao colchão de palha e ao cobertor velho e roto… Por amar, por ser amada...
Podes ver-me, se tiveres alma, a beijar a areia na espuma das ondas e a recuar assustada, a rebentar violentamente contra o que me impede de entrar pelo Mundo dentro… e acabo por me ir, sem qualquer rancor.
Continuo à porta, sentada na calçada, à espera.
Caminho tão calmamente, como o sol caminha até ao fim do Mundo e regresso para ser a brisa que te envolve em dias de chuva.
Tu, um coração perdido, puro, quente, toma conta de mim… Acabarei por me enroscar no teu colo docemente, sem que dês conta, por me atirar ao abismo e gritar alto que um dia amei. Dar-me-ei à mais pura leveza da alma e do ser, que jamais fora sentida nesse teu peito e no do Mundo, jamais alcançada pelas tuas mãos e pelas mãos daqueles que se julgam criadores.
Até que a lama largue a minha roupa e as minhas pernas caminhem, até que a sede mortal desapareça das minhas raízes inexistentes…

Agora vá, diz-me, quem sou eu?

Rita Oliveira

20-12-2008

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Revolução


Agarrei no lápis, uma mistura de nostalgia temporal com dor e saudade…


«Deitei-me cedo, deixei-me ficar envolvida no calor dos lençóis, até que tudo ficasse longe, até que o peso nos meus olhos fosse mais forte que eu. E assim sem esforço deixei-me vencer.
Era uma rua, em pedra mármore (coisa estranha) incrivelmente uniforme, enquanto tudo parecia baço o seu rosto aparecia-me com uma nitidez extraordinária. Não me lembro de quase nada. Apenas de uma alegria súbita após o abraço, após o beijo, após a distancia das coisas, após o fim. Quase que matei saudade:

Pois então, que o relógio ande para trás!
Que o sol gire à volta da Terra!
Que a Terra gire à volta da lua!
Que o Rei se curve perante os seus súbditos após tantos anos de obediência!
Que ninguém fuja dos problemas e medos!
Que sejam eles a fugir de nós!
Que as senhoras do lavadouro cantem a canção do cego mendigo que está na praça!
Que os sinos da igreja toquem tão alto, que o povo será obrigado a juntar-se nas ruas!
Que o silencio acabe!
Que o bêbedo não tagarele na rua!
Que o teu riso seja o som de fundo de toda a minha vida!
Que vejam os ricos como pobres!
Que vejam os pobres como ricos!
Que seja de noite que as crianças decidam sair à procura da infância!
Que fuja o caçador do olhar da presa!
Que a arma atinja quem a dispara!
Que se vertam lágrimas de felicidade!
Que a chuva caía com tanta força, que o seu poder destrutivo e erosivo me despedace, que se funda comigo, que se envolva em mim e que mande rua à baixo!
Que a realidade seja o sonho!
Que a plenitude esteja na realidade!

Rompi num pranto para fora do quarto, precipitei-me para a porta da rua, os meus pés gelaram logo ao toque no chão frio, a chuva invadiu-me completamente, a roupa veio sufocar-me a pele. Não nos fundimos. Corri pela rua, o coração batia tão rápido, não sei se pelo esforço físico, se pela ansiedade.
Os sinos tocavam, nem alto, nem baixo, na verdade tocavam como sempre os ouvi tocar.
O bêbedo continuava a tagarelar pelas ruas, e as leis da física continuavam a falhar naquele corpo.
Quando cheguei, abri a porta, vi-te, contive a respiração, esperei que o coração saltasse do meu peito e parei nos teus olhos. A roupa descolou-se da minha pele, fazendo-a sentir-se abandonada por momentos, até o calor envolver todos os poros do meu corpo.
Enfrentando a dura realidade, já despida de um sonho vivido num sono inocente e ingénuo.
A realidade cravada na alma, era sempre mais forte que o meu Ser, sim, aquela realidade que age com indiferença perante a minha presença e que se ri ironicamente nas minhas costas.
A ilusão, acaba por se ir deteriorando, tão escassa, desaparece, tal e qual como o ultimo crepúsculo de luz, após o pôr do sol, tal e qual como na rua de pedra mármore, uniforme, onde te abracei com força, pela última vez!… nos meus sonhos!»

Quando terminei de escrever, estava decidida a terminar a história com um «Adeus», mas não querendo verter mais lágrimas, a não ser de felicidade, fica assim:

«Até amanhã… »




Quando sentires que o mundo te virou as costas, olha para trás! Não vais ver uma pessoa abandonada pelo mundo! Apenas uma pessoa abandonada por ti!

Rita Oliveira

8-12-2008

sábado, 25 de outubro de 2008

Ele e Ela


Deitados na areia, Ele e Ela sorriem para as estrelas.
A água bate nas rochas calmamente…
Vai e volta…
Parte, regressa…
Ele e Ela sorriem para as estrelas!
Eles partilham o silencio…
Eles brincam na escuridão…
Juntos, fizeram castelos na areia.
Juntos, deixaram que o vento os desabasse.
Tocaram no fundo do Oceano profundo…
Ele e Ela cortaram os cabelos.
Ele e Ela despiram as roupas e prometeram nunca mais serem iguais.
Ela deixou de ser igual a Ela!
Ele não foi mais igual a Ele!
Sorriem.
Partilham o silêncio.
Deram nomes às estrelas.
Inventaram o Pôr-do-sol.
Ela sorria para Ele timidamente!
Ele olhava para Ela pelo cantinho do olho.
Secretamente…
Ele e Ela descobriram-se.
Molharam a cara com a água salgada…
Caminharam entre as rochas, perdidos no Nada.
Deram a mão.
Aninharam-se na areia.
Revelaram segredos!
Ele poisou a mão na face Dela.
Ela poisou a mão nos seus lábios.
Ele e Ela encontraram-se!
Ela deixou de ser igual a Ela.
Ele não foi mais igual a Ele.
Soltaram uma lágrima sobre o Mundo.
Com alivio de a ele já não pertencer…
Eles levantaram-se…
Eles deram as mãos…
Caminharam…
Partiram…
Rumo ao mar.

Rita Oliveira
25-10-2008



terça-feira, 26 de agosto de 2008

A Tela do Pintor


Quando eu era pequenina, rompia da mão da minha mãe a correr pela praia fora, corria direita às gaivotas paradas na areia e não era um passo em falso que me fazia desistir... foi assim que me perdi.
Agora os rebuçados têm outro sabor.
Quando o Pintor agarrou no pincel, prendeu a recordação, a memória, o cansaço de se ser pessoa, a saída da forma humana que alguém consegue mimar e dá cor ao desejo.
E do vazio branco chega à grandeza do sonho.
A realidade destroi a vida.
Ali uma essência de mim se prendeu.
Protegia, meu amigo!
Cuida dela por mim, que eu não sei!
Até que a sensação de perda me devolva o coração e o que desde cedo me levaram.
Soltarei o grito que correrá o Mundo.
Avanço e no caminho encontro o teu sorriso...
O Pintor garrou no pincel e desenhou-o no vazio para mim.
O Pintor apertou com força o seu pincel e desenhou o meu caminho.
O Pintor apagou os charcos da minha estrada.
O pintor fez-te perfeito ao meu lado.
Contou-te os meus segredos baixinho e pintou-me a tua canção.
O Pintor inventou o som das tuas lágrimas a cair.
Deu o brilho aos teus olhos e deu cor vermelha aos meu lábios.
Fez-me correr ao encontro do desconhecido, baixar a espada que me era pesada.
Apagou o disfarce com que parti e finalmente mostrou-me a mim própria, perguntei ao céu «porquê?».
Uns crêem que o Mundo gira à sua volta, outros crêem que ele não gira simplesmente.
O Pintor não via cor.
Pinta!
Conserva-me, guarda o meu ser, protege-me, já que aqui me estrago e estragarei com o tempo.
Guarda-me para não me esquecer do que fui.
Guarda-me para ser fiel ao que sou.
Guarda-me que não é aqui que quero pertencer.
Agarrarei sempre na boneca de pano e taparei os olhos com a ingenuidade.
O pintor parou!
Contemplou a sua obra inacabada...
E abraçou-a com ternura por esta ser imperfeita.
.
Quando eu era pequenina rompia da mão da minha mãe para correr pela praia.
Deixei alguém atrás de mim.
O meu sonho ainda é ir á lua.
Durmo agarrada à minha boneca de pano.
Acho que deixei alguém para trás.
O sonho ficou agora na suavidade de um suspiro...
O pincel fora-me oferecido.
Começarei por vincar as raízes a preto.
Acabarei por criar raízes, aqui e ali.
.
Os laços profundos estão desenhados. Abraço depois o Pintor que os desenhou e também por todas as lágrimas que por mim deitou de puro amor à sua criação, quando o tempo for infinito.
Um dia também eu contemplarei a minha obra de arte de olhos fechados, nessa altura ela continuará a ser imperfeita... mas por fim estará acabada.

Ao meu “Pintor”.
Rita Oliveira
25-08-2008

terça-feira, 8 de julho de 2008

Carta: de Alguém para Alguém

Tabacaria
(...)
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
(...)

Álvaro de Campos


O céu chorou.
Hoje saí de casa, estava a chover, mesmo assim procurei-te por todas as ruas. Senti as gotas de água tocarem-me na pele, de um modo evasivo, até a roupa se colar ao meu corpo.
Tínhamos andado em círculos, eu queria acabar com a sede de liberdade que as lágrimas do céu não conseguiam matar. Fomos unidos...
Fomos unidos pelo não saber ser, pelo vazio que a palavra “Eu” tinha para nós. Pelo teu olhar que desde sempre fora frio, pelo meu coração que nem eu soube aquecer, talvez o céu tenha chorado de dor. Deixaste cair a tua máscara! E eu vi-te.
Procurei por ti!
Chamei alguém que eu não conhecia!
Andámos em círculos, ambos cabisbaixos.
Por isso é que nunca nos vimos.
Por isso é que os nossos olhos nunca se tocaram, por isso o nosso calor nunca se uniu, por isso permanecemos tempo infinito com olhar frio e coração gelado.
Presos ao que não queria-mos ter vivido e que já não podemos mudar.

Procurei por ti!
Para acabar com a transparência. Para acabar com as vozes, para acabar com o eco na minha cabeça, com aquelas noites, passadas no guarda-roupa, a esconder-me dos outros, a esconder-me de mim, a fugir da fragilidade de que ainda hoje fujo, a esconder as lágrimas que chorava por medo, a esconder as lágrimas que chorava por não poder chorar. Mas resistia sempre à tentação que insistia em abordar o meu ser constantemente, e é com pena e vergonha que te digo, que, com o passar do tempo deixei de lutar e vesti a máscara com vergonha de mim, que saí com ela para a rua, que o mundo ganhou uma cor diferente, que sem duvida não era real.
Sou o que sou, porque honro o que fui... deixei a máscara pousada algures dentro do guarda-roupa.
Não voltei lá.

Procurei por ti!
E encontrei-te finalmente de noite...
Junto às dunas, despido, esboçando minúsculos sorrisos ao mar que beija a tua pele.
Ali, com o teu olhar frio, com o céu que chorava incessantemente.
Foi nesse momento que me abandonei. Despi-me e sentei-me ao teu lado, a minha pele estava quente, e a tua tão fria.
Não nos falámos! Ás vezes as palavras só servem para baralhar.
Lentamente... toquei-te na cara para te conhecer.
Fiquei contigo, sentada, e vi-me partir.
Larguei a máscara já tão pesada e deixei-a ir embora com a maré.
Enquanto permanecias sentado, frio, acompanhando o céu, chorando com ele.
Até não aguentares o frio que rodeava o teu corpo...

Posso dizer-te que não gosto da capa que vestes.
Posso dizer-te que sem a capa consigo ver-te.
Posso dizer-te que sem essa máscara consigo tocar na tua cara.
.
Quando os meus lábios não tiverem coragem para dizerem que te amam, abraçar-te-ei...
E não sentirás mais frio.
.
Rita Oliveira
08-07-2008
O Poço

"Afundas-te às vezes, cais
no teu fosso de silêncio,
em teu abismo de cólera orgulhosa
e só a custo consegues
regressar, mas ainda com vestígios
do que achaste
nas profundezas da tua existência.


Meu amor, o que encontras
no teu poço fechado?
Algas, lama, rochas?
Que vês de olhos cegos,
rancorosa e ferida?


Vida minha, no poço
onde cais não acharás
o que no alto guardo para ti:
um ramo de jasmins orvalhados,
um beijo mais fundo que o teu abismo.


Não tenhas medo, não caias
de novo em teu rancor.
Sacode as palavras que te feriram
e deixa que voem pela janela aberta.
Elas voltarão a ferir-me
sem que tu as dirijas,
pois foram proferidas em momento de dureza
e esse momento será desarmado em meu peito.


Sorri para mim radiosa
se a minha boca te fere.
Não sou um pastor brando
como os dos contos de fadas,
mas um bom lenhador que reparte contigo
terra, ventos e espinhos dos montes.

Ama-me tu, sorri,
ajuda-me a ser bom.
Não te firas em mim, que será inútil,
não me firas a mim porque te feres."

(descobri que quanto mais o Homem tenta caracterizar de uma forma complexa a sua personalidade e a do Ser Humano, mete sempre os pés pelas mãos=X).




domingo, 22 de junho de 2008

Ninho




O que está atrás da janela?
O despertar do dia.

O acordar...
Primeiro vem o sol e acorda a luz.
Desperta a vida, acorda a voz.
Observei, vezes sem conta, as pequenas frestas deixadas pela persiana, que a luz, curiosa, usou para penetrar no interior da escuridão.
Esperando o meu despertar.
Levanto-me do Ninho...
Com o Coro posto na minha janela, partem todos ao mesmo tempo, para as suas casas de palhinhas, sem deixarem de se fazer ouvir. Cada um para o seu lar... cada qual com o seu Ninho.
Há sempre aquele passarinho que fica no chão, esquecido.
Caminho na rua, perdida, concentrando-me nos sons de momentos a momentos. Resumindo-me a uma semente deixada por alguém, e deixo que o tempo me desafie a seu belo prazer.
Sento-me no banco do jardim, e fico à minha espera.
Hoje, perdi-me! Devo andar por aí com roupa cor de ar, devo ter um olhar vazio, a minha voz deve ser inaudível.
Olhei para todas as esquinas, olhei para todas as ruas e nunca me vi!
O que sou?
Não sou peixe! Não sou gato! Serei pássaro?
Voltei a olhar... não me vejo.
Hoje, perdi-me! Hoje não soube voltar para o meu Ninho.
Decidi permanecer sentada, desta vez à espera de alguém que me trouxesse até mim. Levando-me de volta para o Ninho, cuidando do passarinho pequenino que levantou voo, sem saber voar.
Passaram horas, passaram dias... Até que vi uma pessoa sentada no passeio, do outro lado da rua, a olhar para mim, como se estivesse ali desde sempre. Seria eu?
Levantei-me e corri ao seu encontro. Olhei nos olhos de Ninguém que rapidamente se tornou Alguém.
Também se levantou, ficando num nível ligeiramente superior ao meu. Com um olhar quase tão vazio como o meu!
Pela primeira vez deixei-me vencer pelas lágrimas que insistiam constantemente em salgar a minha pele.
Encostei-me ao peito do desconhecido.
Pedi-lhe para tomar conta de mim.
Abraçámos o Meu Mundo.
Abraçou-me com força, fiquei enroscada em braços muito mais fortes que os meus, para segurar no meu corpinho, quase tão frágil como a minha alma desaparecida. Fiquei ali, aninhada, a ouvir o bater daquele coração. Finalmente regressei ao Ninho.
Finalmente, achei-me! Sempre estive perto afinal! À distância de um abraço.
Largamo-nos cuidadosamente, sem dizer nada. Tudo ficou quente.
Abri as minhas asas.
Levantei voo.
Segui rumo ao céu.
Sabendo que atrás da persiana que liberta as pequenas frestas de luz... sabendo que atrás da escuridão...
Está o Mundo...e está à minha espera.
Irei procurar as palhinhas para construir o meu Ninho.
Irei cantar mais alto que todos os outros.
Irei cantar a alguém que se apaixone pela minha melodia.
Alcancei a liberdade total, quando encontrei a minha alma e a abracei com saudade.


Rita Oliveira
22-06-2008

sábado, 31 de maio de 2008

Andando à chuva



Não era na escola, não era no jardim. Não era feliz em mais lado nenhum...
Era de noite e era naquelas conversas a que chamavas “Conversas de antes de dormir”. Conversas em que a aconchegavas com os cobertores, em que lhe falavas de coisas bonitas e em que ela pequenina e ingénua te falava de sonho.
Criança mas ainda assim sabia da tua luta contra ninguém, contra ti.
Sentavas-te na sua cama, espalhando lágrimas invisíveis pela tua face, insensíveis ao contacto com a tua pele. Tu tinhas o poder de fazer brilhar aquele rosto infantil, já quase adormecido. E isso fazia-te brilhar também.
Ao veres os olhinhos da menina fecharem, aguardavas ali, sem te mexeres, sentada na cama, envolvida por toda aquela fragilidade, tentaste encontrar o suspiro que nunca soubeste arrancar de ti, da alma e do teu corpo que se sentiam aprisionados. Deixavas-te vencer!
Levantaste-te, beijaste a menina que dormia e devagarinho apagaste as luzes, fechaste a porta branca com aquela meia-lua pintada de azul, deixando-a então sonhar descansada.
Mas nunca demorava muito! Uma ou duas horas depois, já tu estavas também envolvida no sono...
Lá vinha ela... muito devagarinho, para não fazer barulho, para não acordar ninguém, abria a porta do teu quarto e perguntava baixinho «Estás aí?». Sem esperar resposta subia para a tua cama e sentava-se à tua frente a ver os olhos que a espelhavam, a aguardar o teu sorriso, para por fim poder enroscar-se nos teus lençóis mornos, deixando de ouvir a chuva, os trovões, ouvindo apenas a canção e todo o carinho...
Voltando ao sonho...
Deves lembrar-te disso...

Ainda que não fosse por muito tempo e ambas sabiam que não ia durar...
Abriste a porta que te levava à saída, com olhos postos na menina que queria sair contigo. Agarraste na maçaneta da porta, as mãos estavam suadas e as lágrimas corriam pela cara de quem não sabia viver, mas soube amar.
O vento tocou-te, os cabelos beijaram-te os lábios.
A porta fechou-se atrás de ti.
Passaste a ser tu! E só tu!
Coração perdido!

Quantas não foram as vezes em que ela acabava por adormecer à espera que a fosses aconchegar?
Quantas não foram as noites em que ela ia devagarinho abrir a porta do quarto e perguntar «Estás aí?»?
Quantas não foram as noites em que ficava sentada na tua cama, à espera do teu sorriso, acabando por se enroscar nos teus lençóis frios?
Ouvindo a chuva.
Ouvido os trovões. Até se cansar.
Até não poder chamar mais por ti...

Deves ter contado os dias em que voltaste à porta que tinhas fechado e que não tinhas força para abrir...
Deves ter imaginado e relembrado a porta branca com a meia-lua pintada de azul...
Deves ter tentado ver o que está agora lá dentro...
Deves ter visto pó...

Deves ter tido medo de não encontrar...
Quem já não conheces...


Rita Oliveira
31-05-2008

sábado, 17 de maio de 2008

Laços


Um pátio, um parque, uma lágrima, um sorriso...
Aquele jogo desenhado no chão... a relva molhada.
Sempre esteve lá... ainda está aqui...
As mãos que se apertavam com a alegria e espontaneidade de se ser criança.
As descobertas...
O Horizonte que parava no olhar à espera de algo...
A euforia de ir brincar com a lua,
De ser criança...
De crescer...
O medo da escuridão, desperto pela noite...
A procura do conforto.
A procura da luz.
Os segredos...
O choro de um...
O choro do outro... o choro dos dois.
Carinho inesperado,
Gestos ingénuos.
A bicicleta, o vento a bater na cara.
O lencinho,
A alegria. O pião que girava... girava...
Girava...
Sem pensar nunca na mudança...
A alma a transbordar de sentir.
A roupa que já não serve.
Mãos que se largaram lentamente.
O romper do tiro que fez começar a corrida...
Saindo do mesmo ponto de partida.
Laços nunca rasgados...
Vidas para sempre entrelaçadas,
Seguindo apenas caminhos diferentes.
Ansiando metas ainda distantes...
Como o jogo marcado no chão,
Como a relva molhada,
Como o escuro, os medos, as lágrimas,
Como o sorriso.
Que existia por sermos nós,
Porque éramos crianças,
Porque somos crianças,
Porque seremos crianças, até o Horizonte desaparecer do olhar.
Que assim seja para sempre!

Rita Oliveira
17-05-2008

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Existes? Então pensa!




Desgastante para ti... como o mar é para as rochas!
Caminhámos!
Caminhei de mãos dadas contigo, tão perto e tão longe de ti!
Subimos montes, vivemos em vales, que eu insisti em inventar!
Tão longe e tão perto do nada.
Uma canção de embalar nos lábios.
Olhos de esmeralda, pintados a tinta de óleo para não terem medo da humidade provocada pelas lágrimas que deixas cair, para não se desbotarem com o tempo!
Sais-te! Pergunto-me se alguma vez entraste!
Sempre quiseste ir tocar na lua. No entanto, tens preguiça de atravessar a rua e ir conhecer o vizinho!
Cá em baixo ainda ficou muito por conhecer!
Sempre pensei que se começava pelo princípio. Sim. O essencial ainda está por descobrir.
Ainda assim é incrível.
Vencidos? Não! Heróis!
Assim nos deixamos adormecer pelo calor humano, tão vital! Deixando por momentos que tome conta de tudo, entregando-nos ao sonho de nos irmos semeando.
Chegaremos ao equilíbrio.
Iremos ser nós a desenhar as feições, a traçar o carácter e a personalidade.
Como uma folha em branco, completamente vazia!
Inicio-me aqui, portanto!
Com mente cor de vento.
Para não ter medo, levamos as tuas duas esmeraldas na memória!
Por fim, despidos do passado.
E sem pudor a viagem começa.
Apertando as tuas duas esmeraldas para te sentir comigo, enfim, para não ter medo.
Pode ser?

E tenho sérias suspeitas, de que a estrelinha que dorme em cima do meu telhado, é obra tua!


Rita Oliveira (02-05-2008)



sábado, 26 de abril de 2008

Grito Mudo



Vai!
É agora!
Respira, agora podes respirar!
Nada se pode impor no teu caminho!
Liberta-te das correntes!
Corre!
É agora!
Abre as janelas, refresca a alma, cai na fraqueza tão desejada!
Deixa o vento correr por ti, ouve as suas histórias!
Deixa-te voar... vá lá... só hoje, só um bocadinho...
Fica um segredo só nosso!
Agarra no lápis, deixa sair o coração, o sentimento tocar-te-á!
E as palavras aparecerão!
.
Preciso de escrever, para rebentar de mim.
Desabrochar o meu ser, desvendando a minha existência a alguém, ou até a mim própria!
Levanto o véu, mostrando o que é impronunciável para a minha boca, deixando em palavras metades de mim mesma!
E dou a voz ao silêncio!
Mergulho em sonhos conhecidos por ninguém, que teimam em me fazer viver no limite da fronteira que separa a lucidez da loucura.
Finjo que o céu perdeu toda a altura!
E por momentos resumo-me a um mito considerado complexo em busca de algo que não sei se existe!
Talvez seja por isso que lhe dão o nome de descoberta!
Incessantemente aprendo a ver com palavras e sol cada pedacinho de mim, que eu insisto em ignorar e em fechar os olhos!
Incessante até o pôr- do- sol me roubar a luz!
.
As correntes derretem-se com o calor da minha mente e do meu grito!
A minha alma não se limita ao meu corpo, nem sequer cresceram juntos!
Ambos viajam a ritmos diferentes, de melodias muito minhas!
A alma viaja!
A alma dói!
Crescer dói!

Complicado como tocar no céu!
Simples como abrir uma janela!
.
É agora!
Ninguém me pára!
.
Rita Oliveira
26-04-2008
=)

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Refugio ou Engano?



Quero tocar-te, porém, é impossível alcançar o invisível.
Quero chegar-te no azul do dia, mas há barulho, há movimento, e tu estás no meio da multidão que não posso tocar.
As minhas lágrimas quiseram conhecer o mundo, os meus ouvidos fizeram tudo para ouvir o teu coração. O Teu Coração.
O meu corpo decidiu dizer “Olá” ao teu colo. Adormeci e vivi o teu sonho, parei o tempo com o meu simples querer.
.
Existes!
Não existes!
.
Vi nos teus olhos transparentes, tempestades e gritos de silêncio ensurdecedores, com a minha mão toquei o teu rosto invisível, senti a tua pele já quente, mas tão fria.
Sinto-te sem te tocar.
.
Existes!
Não existes!
.
Mostraste-me um Mundo.
Abriste-me portas.
Conheci a voz e o calor!
Cativaste-me sem nunca me conhecer.
Desculpa, mas não vejo o invisível.
Destruis-te sem mãos o mundo que me mostras-te!
Outros momentos virão...
Agora deixaste-me sozinha...
Com a tua canção.
.
Existes!
Não existes!
.
Vais quere-la de volta!
Vais flutuar!
Com um sorriso na cara!
Com os teus olhos de água!
Vais abrir os teus braços transparentes,
Vou ouvir o teu coração invisível (mas nem por isso irreal!)
O meu corpo, vai aprender a palavra “saudade” quando voltar ao teu colo.
O tempo vai parar com o nosso simples querer.
Vamos entrelaçar os dedos, vamos dar a mão.
Porque tu foste, mas deixas-te ficar...
A tua canção.
.
.
Estás tão além dos meus sonhos!
.
.
Rita Oliveira
17-04-2008
.(Será verdade? Sim, é mesmo verdade! E o que é escuro também me assusta!!)
.
.Mafalda Veiga- O Meu Abrigo
.
Olha pra mim
Deixa voar os sonhos
Deixa acalmar a tormenta
Senta-te um pouco aí
Olha pra mim
Fica no meu abrigo
Dorme no meu abraço
E conta comigo
Que eu estarei aqui
.
Enquanto anoitece
Enquanto escurece
E os brilhos do mundo
Cintilam em nós
Enquanto tu sentes
Que se quebrou tudo
Eu estarei
Sempre que te sentires só
.
Olha pra mim
Hoje não há batalhas
Hoje não há tristeza
Deixa sair o sol
.
Olha pra mim
Fica no meu abrigo
Perde-te nos teus sonhos
E conta comigo
.
.
.

sábado, 5 de abril de 2008

Meu Raio de Sol


Ainda era dia, quase noite, era só ele que ia na estrada. As luzes da cidade, dos carros, dos prédios, dos centros comercias iluminavam as ruas, as pessoas, as mentes, tudo!
Mais um dia (quase noite) passado, sempre a olhar para tudo, a ver todos aqueles dias já passados, a sentir todas aquelas coisas já sentidas. Cada noite, um banco diferente, de um jardim diferente.
Mas ele nem sempre foi assim, nem sempre viveu na rua. Antes existiam sonhos. Antes havia aquela música
“You are my Sunshine”.
Aquela música que lhe aquecia o coração, cantada pela mãe, que o adorava mais que tudo, num tom de voz amoroso, que mesmo não a entendendo aquecia-lhe o coração, e assim deixava-se embalar com aquele ritmo lento e baixinho. Talvez a canção fosse uma súplica da mãe a Deus, para lhe proteger o seu filhote, porque nos tempos que correm amor só, não chega! Seja como for não lhe valeu de muito.
Parecia ser tudo tão pouco... e era tanto!
Depois vinha o dia seguinte. Livros na mão, mochila ás costas e um raio de sol no olhar, como lhe dizia a mãe. E cantava a música baixinho em direcção á escola.
Era sempre assim um raio de sol no olhar, nas mãos, na mente, em tudo o que fazia, em tudo o que fez! O medo combatia-se com a música. Quando vinha da escola já quase de noite cantava, e assim os receios trazidos pela escuridão eram afastados. Por aquela música, que parecia ser tão pouco, e era tanto! A meiguice que tinha de existir numa voz para se poder sentir. Mesmo não a entendendo ele adorava-a.
“You are my Sunshine...”
Mas isto era outra vida!
Falemos do presente!
Havia um homem na rua, num banco de jardim, olhado com desdém, obviamente!
Onde está o Raio de Sol?
Ele olha para as luzes, ele olha para as pessoas, olha para as paisagens, especialmente para aquelas em que só reparou quando ”a vida mudou”. Sentava-se num banco e ficava a apreciar, deu nomes a todas as árvores, olhava as nuvens, contava as estrelas à noite.
E via aquela gente, tão atarefada, ninguém parava para ver, ninguém ligava a uma beleza daquelas.
Onde está o Raio de Sol?
Têm medo dele! Ou talvez de ver a imagem da solidão.
Ele também tem medo!
Ele chora a vida que tem!
Onde está o Raio de Sol?
Todas as noites especialmente no Inverno, sobretudo nas noites chuvosas, na porta de um prédio ou de baixo de uma varanda, ele está lá! E tenta aquecer o corpo, a alma, o coração.
Onde está o Raio de Sol?
O frio gela-lhe as faces.
A música aquece-lhe o coração.
Ele também tem medo!
E canta baixinho:

“You Are My Sunshine
My only sunshine.
You make me happy
When skies are grey.
You'll never know, dear,
How much I love you.
Please don't take my sunshine away”

E amor só não chega?

Rita Oliveira
05-04-2008
(é de embalar, não é pimba!!espertinha.xD)

quinta-feira, 20 de março de 2008

Corredor(a vida corre!)


Era grande chato e comprido. E nele apenas caminhava uma criança inocente (que de criança só tinha mesmo a inocência) e uma criada velha que estava encarregue de levar a miúda até ao local desejado.

De pulso firme a criada agarrava a pequenita pelo ombro. Criança de poucas falas e de muita timidez mas nunca de má- educação!

A pequena sabia-o, ela sabia porque estava a caminhar naquele corredor, e sabia para onde a levavam.

Parecia não ter fim, aquela “estrada”.
Havia porta dos dois os lados.
Quando era ainda mais miúda, enroscava-se nos lençóis e fechava os olhos, á espera que alguma coisa sai-se de baixo da sua cama ou de dentro do seu guarda-roupa. Mas nunca saiu nada! E o medo foi desaparecendo e tudo teve um fim quando num momento de coragem abriu as portas do guarda-roupa e viu que não estava nada lá dentro... apenas ar.

Com o passar do tempo foi aprendendo que na vida há sempre portas por abrir, e ao serem abertas não se descobrem monstros, mas sim mais portas á espera de serem abertas, e assim percorre-se um caminho(como um corredor, talvez), temos de ser nós a escolher as portas que queremos abrir, porque é de nós que depende a vida, há sempre portas que ficam fechadas e nunca se abrem, há outras que têm mesmo de ficar fechadas e prova disso era o Senhor Joaquim que nunca foi muito dado a estas filosofias, gostava de assustar toda a gente do parque e ninguém lhe fazia frente.

“Fazes mal em não ter medo de mim! Sabias?” disse-lhe o Senhor Joaquim com a cara muito próxima da dela. E pronto, o problema estava resolvido, foi fácil entender que enquanto a boca dizia” Todo o mudo tem de ter medo de mim”, os olhos gritavam “Todo o Mundo tem de ter medo de mim, porque eu tenho medo do Mudo todo!”.

Talvez tenha sido uma porta que devia de ter sido aberta, e não foi, por medo se calhar. Mas uma vez admitido este facto foi fácil criar laços entre idoso e criança.

Mas ela estava ali agora, a seguir um caminho que não era o dela.

A vida sempre fora chata e uma porcaria, por ser sempre o mesmo, porque gritar, discutir, a constante violação do seu espaço era já uma espécie de regime diário, com o tempo tudo ficou monótono, ficou tudo muito igual e não havia nada que marcasse a diferença.Mas ela fazia toda a diferença.

Tinham chegado á porta desejada. Os pensamentos e recordações foram parar a uma gaveta bem fechada.

Ela tinha de abrir uma porta que não tinha de ser aberta, pelo menos, não por ela.

A criada olhou para a pequenita pela primeira vez.
Haviam ainda tantas perguntas e nenhuma resposta.

Devia de ter uns dois ou três anos quando se atreveu a perguntar “O Sol está no céu porque? Morreu?”, mas não tardou muito para alguns começarem a rir, outros não acharam assim tanta piada “ Que pergunta parva, estúpida, vê lá se quando abrires a boca outra vez dizes alguma coisa de jeito para variar!”

“O que é que tinha feito de mal?”.

“Porque falam assim?”.

“Afinal o Sol está no céu porquê?”.

Não paravam de rir.
Com dois ou três anos uma criança no mundo jurou a si própria que nunca mais ia abrir a boca para perguntar o que quer que seja. Havia de conseguir encontar respostas sozinha! Mesmo que as portas lhe fossem trancadas.
Entrou! Sentou-se á frente de um homem, que nunca levantou os olhos para olhar para ela.

“Como te chamas?”

“Qual é o teu nome?”


O silêncio.

A voz infantil a dizer o seu nome, as lágrimas que caíam pela sua cara de menina, o medo de se tornar “prisioneira” de uma vida feita por outros, e a dor que teve de sentir para entender que atrás de uma porta encontra-se algo mais que outra porta, encontra-se algo que é doce e amargo, algo que nos faz rir e chorar, que dá a dor mas também a alegria, e que não era ela que devia estar ali!

Que é preciso penar para aprender;

Que viver não é apenas existir;

Que é preciso procurar aquilo que aumenta o coração.

Quem quiser saber como é que ela o aprendeu:
“Foi só caminhar no corredor, chegar ao fim, e abrir a porta!”.


Rita Oliveira
20-03-2008

sábado, 15 de março de 2008

A Invenção do amor


Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com caracter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade

É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas Sobretudo
protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas
...
É possível que cantem
mas defendam-se de entender a sua voz
Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa das montanhas
Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta
...
Procurem a mulher o homem que num barde hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notíciade que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua



Daniel Filipe


(boa aula de Língua Portuguesa)

sábado, 1 de março de 2008

Sebastião

Ainda me lembro daquele dia, tinha apenas uns centímetros de cumprimento e não se cansava de girar sobre si mesmo. Deram-mo no dia em que completei os meus dez anos de idade. Lá vinha ele no aquário minúsculo e redondo, lá vinha ele, o meu peixinho vermelho.


Oh Sebastião! Maldito o dia em que tive de ir buscar o pão, naquela manhã de nevoeiro... Aposto que nunca me teria lembrado de tal nome!


È engraçado! Foram precisos quatro anos para eu prestar atenção, foi preciso estar sozinha naquele dia para ver “o outro lado”.



Estava ali o Sebastião, agora já maior, com um aquário enorme, rectangular, sozinho.
Pensei:


“Nunca deve ter saído do aquário!” Lógico!

“O rio? Ele não conhece o rio!” Claro que não!

“E o mar? Aquela imensidão bela!”


Comecei a sentir pena dele! Do meu Sebastião, que se divertia consigo mesmo, limitado por quatro míseras paredes de vidro, com apenas umas meias dúzias de litros de água, movimentava-se graciosamente, completamente alheio ao que estava por de trás das suas paredes transparentes, à sua ignorância, ao desconhecido.
Não sabia que havia “algo mais”, ou se sabia, parecia não se importar!


Pena dele? Era eu que estava ali, sentada numa mesa a sentir pena de um animal irracional. EU! Igual a milhares, igual a milhões, igual a toda a gente!


Temos o que nos é preciso, mas sabemos que existe algo mais! E falta sempre algo!

Hoje conseguimos o que achávamos que era preciso ontem, amanhã isso já não chega e há que ter mais, e falta sempre algo!


Os pobres querem ser ricos, os ricos querem ser ainda mais ricos, abundam de riqueza, mas isso só não chega! Há que ter mais! Mas vai sempre faltar algo!


Insatisfação.



Necessidade de ter, nem que seja só para dizer que se tem.


Pena dele? De um peixinho vermelho, que se chama Sebastião por grande ironia do destino (e minha!), que gira sobre si mesmo, que se diverte consigo próprio e que vive feliz com toda a sua irracionalidade?


Pena dele?

De mim?

Do mundo?


Não sei!



Rita Oliveira
29-02-2008

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Eu e a vida


Vagueei na solidão,
Procurei, andei sozinha
Quis encontrar razões,
Arranjar explicações,
Tanta vez em desalinho

Então a vida questiono-me:
“Estás mal comigo?”
Essa questão ensombrou-me,
E respondi:
“Já me roubas-te mais que um amigo!”

“Eu não te roubei nada,
Escuta bem a minha voz
Um amigo nunca morre,
Ele continua a viver
Para sempre dentro de nós”

Então olhei para ela magoada,
Por tudo o que me fez passar
Foi então que a entendi.
Lembrei-me das coisas boas que me deu,
E acabei por a abraçar.

Rita Oliveira
2006

Fazes parte de mim!


Na noite escura, na casa escura, nas paredes encardidas...
Soltou-se carinho... parecia impossível!
Até as estrelas fugiram da escuridão...

Não me toques! Não te quero sentir!

Não fales! Não te quero ouvir!

Não quero que faças parte de mim!

Mas entretanto vi... a menina sentada ao teu colo, que apreciava os rastos de meiguice deixados pelos teus gestos, e a ternura no teu olhar brilhante, era nele onde todas aquelas estrelas se tinham refugiado.
E a menina sentada ao teu colo, que escutava todas as tuas histórias... como quem escuta um grande segredo... sonhadora, e rosto familiar.

O Tempo voltou para trás... o Tempo foi em frente, e ninguém me tira da cabeça que ele só não parou porque não podia!... por fim... levou as mãos aos olhos e... chorou!
O sofrimento do passado, a instabilidade do presente e a expectativa depositada no futuro...estava tudo ali!
Os pensamentos andavam amontoados.

As estrelas, curiosas, voltaram a descer dos céus mas desta vez, para tentarem perceber o que se passava cá em baixo.

Tudo soava a confusão!

Fazes parte de mim!

E naquela noite escura...Senti-te, abracei-te
Ouvi-te...

Vá lá... guarda-me no teu coração! Para eu ser tão real para ti como és tu para mim!

Então puseste-me ao teu colo... tal e qual como dantes.
Agarraste-me, para nunca mais me largares!

Naquela noite escura...
O Tempo limpou as lágrimas do seu rosto envelhecido!
Naquela noite escura...
As estrelas subiram aos céus descansadas e felizes.
Eu... eu fiquei contigo! A ver o nascer do sol.

Rita Oliveira
08-02-2008



quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

O Rio














Era uma vez uma grande vila, e uma casa muito bonita á entrada daquele grande paraíso que era o rio naquela altura... o rio... com a voz de criança.
Uma casa bonita... porém um lar desfeito.
...o rio grita, com voz infantil.
Famílias juntas fisicamente... outras separadas pelas voltas da vida.
Os machados? Esses são agarrados pelos escravos... sim, porque as gravatas são engordadas pelos Senhores.
...o rio chora.
Pessoas de rosto limpo e jovem são constantemente reconhecidas na rua. Pessoas de rosto triste de olhar rugoso já envelhecido pela vida são olhados com desdém...”afasta-te filho! Que o Homem é um gatuno!”, porém são os mais felizes!
Isto, claro, depende do que se entende por felicidade...
...o rio sorri baixinho. Sorriso inocente...
Tentar viver a vida que não se tem é morrer sem dar por isso. Vergonha? Sim, sim claro, estou de acordo!Vergonha de vocês próprios! E medo? Medo de que? Já no fim da vida ao olhar para trás, ao ver tudo o que se perdeu a troco de uma ilusão sem nome, irão perguntar :
Medo de que? De mim? da morte? Ou da vida não vivida?
Vamos viver!
Vamos ser felizes!
Vamos ficar felizes com a felicidade dos outros!
Para no fim acolhermos a morte como uma velha amiga.
Era uma vez um rio que corria devagarinho... rumo à felicidade.
Rita Oliveira
06-02-2008